Ele deu mostras de sua verve literária ao relatar com transparência e estilo aspectos de sua rigorosa atuação como gestor público
Não bastasse ser um dos maiores escritores da literatura brasileira de todos os tempos, Graciliano Ramos (1892-1953) foi também um político exemplar. De 1928 até abril de 1930, o autor de Vidas Secas exerceu o cargo de prefeito na cidade de Palmeira dos Índios e aplicou na administração pública o mesmo rigor que destinava ao trato com a palavra. Ao final do primeiro e do segundo anos de seu mandato, o romancista elaborou dois relatórios de prestação de contas que entraram para a história da política nacional. Com uma linguagem clara e por vezes irônica e sarcástica, ele produziu uma verdadeira lição de transparência diante da máquina pública. Nesta edição, o jornal "A Gazeta" traz depoimentos de pesquisadores, acadêmicos, artistas e juristas sobre esse exemplo político pertinente, que deve estimular a reflexão em todos nós, (e)leitores, às vésperas de mais uma eleição.
Um prefeito que toda cidade merece
433 votos. O número foi suficiente para eleger Graciliano Ramos prefeito do município de Palmeira dos Índios, no pleito ocorrido no final de 1927. Durante os dois anos seguintes, mais precisamente até o dia 10 de abril de 1930, o futuro escritor percorreria uma singular trajetória política no comando administrativo da cidade então considerada a “princesa do sertão”.
Embora já arquivasse uma considerável produção literária em periódicos locais – geralmente assinada com pseudônimos –, Graciliano ainda não tinha iniciado a carreira como contista e romancista que o consagraria como um dos maiores escritores de língua portuguesa e legaria obras antológicas como Vidas Secas, Angústia e São Bernardo.
Nessa época, aos 35 anos, o então ‘jovem Graça’ voltara de uma temporada no Rio de Janeiro abalado por uma tragédia familiar – dois irmãos, uma irmã e um sobrinho tinham morrido vítimas de uma epidemia de peste bubônica. Uma junção de fatores – como um crime político ocorrido na cidade, um pedido direto do governador Álvaro Correia Paes e a provocação de caciques políticos de manda-chuvas locais – o levou a disputar o pleito eleitoral pelo Partido Democrata.
Eleito sem campanha e sem comício
Antes de conhecer detalhes e pormenores dos documentos elaborados pelo escritor, é preciso compreender o contexto em que sua administração transcorreu. Provocado a disputar as eleições, Graciliano Ramos foi eleito sem campanha ou sem ter feito um único comício. Anos depois, em entrevista à Revista do Globo, em 1948, ele reconheceu o ambiente suspeito de sua eleição: “Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando”.
Pois é. Isso no final de 1927, em pleno decorrer da República Velha, numa terra pobre, situada entre o agreste e o sertão de Alagoas. Um lugar em que a lei era frouxa e subserviente aos mandos dos coronéis. Foi nesse cenário que o filho de um comerciante local impôs o seu estilo rigoroso, metódico e imparcial. Ele chegou inclusive a elaborar um novo Código de Postura Municipal, que atualizou o último, datado ainda da época do império.
Relatórios equilibram ironia e sobriedade
Nos relatórios, a abordagem formal foi substituída por notas cheias de ironia, redigidas num tom mais coloquial do que propriamente literário. De todo modo, os textos explicitavam uma intimidade nata com a língua – em forma e conteúdo –, numa ousada e honesta descrição de suas realizações. Vejamos alguns destaques.
Logo no início do primeiro relatório, o prefeito ressalta que sua primeira atitude foi “estabelecer alguma ordem na administração”, deixando bem claro quem ‘daria as cartas’ a partir de então.
“Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante de Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. (…) Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas”.
Autor da tese de doutorado Sarmento é considerado uma das maiores autoridades locais na obra do Velho Graça. Sobre os Relatórios, ele escreveu à Gazeta:
“Quem tenha a oportunidade de ler com atenção e espírito crítico os dois relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios Graciliano Ramos (1928-1930) para o governador do estado de Alagoas Álvaro Paes vai deparar com uma demonstração de sinceridade atordoante. No relatório de 1929, o prefeito Graciliano Ramos diz ao governador que não foi possível realizar muitas obras, sobretudo porque ‘os nossos recursos são exíguos’. Hoje isso não seria problema, porque entre o dizer e o fazer se estende uma estrada capaz de nos levar à Terra do Nunca e quase ninguém fica incomodado com a fantasia malévola. Uma razão atual é que o esforço do sincero — e ele nem precisa mais sê-lo — tem o aparato, antes desconhecido, da mídia televisiva e de toda a parafernália da publicidade, que mentem mais do que ele.
O QUE ELES DISSERAM SOBRE OS RELATÓRIOS
MAURÍCIO MELO – Jornalista da TV Senado
No próximo mês de outubro, a TV Senado exibirá um documentário dirigido por Maurício Melo em comemoração aos 70 anos da publicação de Vidas Secas, completados em 2009. Para não cair no clichê e evitar o tom meramente elogioso, o jornalista procurou responder em paralelo à seguinte questão: “Enquanto homem público Graciliano correspondeu para minimizar as misérias humanas que ele denunciou em seus romances?”, pergunta Maurício Melo, que dá a resposta em seguida: “Ele foi um cara inovador para a época. Ele tentou, dentro de seus limites, acabar com aquela situação vivida por seus personagens”. Maurício lista os relatórios entre os mais importantes documentos políticos do Brasil. “Uma análise política do relatório mostra que ele se equipara a um documento chamado Projeto para o Brasil, elaborado por José Bonifácio (1763-1838), onde ele procurou modernizar o País do ponto de vista administrativo”, explica.
IVAN BARROS – Jornalista, advogado e escritor
Ex-repórter da extinta revista Manchete, promotor de Justiça aposentado e autor de diversos livros sobre assuntos tão díspares quanto a eutanásia e o jurista alagoano Pontes de Miranda, Ivan Barros traz a visão de um filho da terra que foi administrada pelo Velho Graça. Além de ter escrito o curioso Graciliano Era Assim – lançado em 1974, pela Sergasa –, o palmeirense guarda a sete chaves duas raridades: os originais do primeiro relatório e o código de conduta municipal elaborados por Graciliano Ramos. “Sua administração construiu quatro escolas na zona rural”, observa o escritor, que prepara um novo livro: Graciliano, o Prefeito que Virou Best-Seller. “Até hoje, de lá para cá, ele foi o único prefeito que deixou dinheiro nos cofres ao sair da prefeitura. Dizem que os relatórios inspiraram a Lei de Responsabilidade Fiscal”, conta. Sobre os Relatórios, Ivan Barros é direto: “Eu vejo os Relatórios como uma lição para esses políticos fichas-sujas, ficha limpa e os que estão denunciados por improbidade ou irregularidades”, sentencia.
ANA FLORINDA DANTAS – Juíza membro do Pleno do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas (TRE-AL)
Além de juíza da 22ª Vara Cível da Capital e professora da Faculdade de Direito do Centro Universitário Cesmac, Ana Florinda Dantas é juíza membro do Tribunal Regional Eleitoral. Portanto, um nome diretamente ligado ao assunto mais comentado do momento: as eleições. Na sua opinião, Graciliano Ramos foi “um exemplo de probidade administrativa e respeito aos seus administrados, pois levou a democracia representativa ao mais alto patamar, quando se sentia efetivamente um representante do seu eleitor, a quem prestava contas e dava satisfações dos seus atos de administração. Mais que isso, tinha um comportamento pessoal compatível com a austeridade do governante que sabia ser, mesmo involuntariamente, um modelo para os administrados”. Sobre a prestação de contas do escritor, ela observa: “Fico sinceramente comovida quando vejo a simplicidade e a sinceridade de seus Relatórios, pois tenho a nítida impressão de que usava de linguagem clara para que fosse bem entendido pela população que iria lê-lo, uma vez que como homem culto e erudito, seria até de se esperar que se utilizasse de uma linguagem mais rebuscada”. E compara os Relatórios com os modelos adotados atualmente.
ARNALDO BRANCO – Cartunista
Antes do término da entrevista, Arnaldo Branco, um dos mais celebrados cartunistas brasileiros da nova geração, lembrou de um dado curioso: seu pai, o jornalista Aloísio Branco, tinha sido ‘foca’ (repórter iniciante) de Graciliano Ramos no jornal Correio da Manhã, lá nos anos 50. Em meio à correria do lançamento de mais um livro, o quadrinista encontrou tempo para nos conceder uma entrevista mesmo envolvido em tantas atividades – ele é cartunista da Folha de S.Paulo, quadrinista do jornal O Globo e do portal G1, roteirista do programa Casseta & Planeta, Urgente! e editor do site Mau Humor – www.oesquema.com.br/mauhumor. Arnaldo é outro fã da obra do escritor nascido em Quebrangulo. “Eu sou mesmo. Eu gosto muito de Memórias do Cárcere. Para mim, é um dos grandes livros brasileiros por tudo aquilo que ele simboliza para o Brasil. Gosto muito de São Bernardo. Não há como falar em literatura brasileira sem citar Vidas Secas. Ele é um excelente escritor, um cara denso, a literatura dele era dura. Eu o acho parecido com João Cabral de Melo Neto na secura do texto, mas aquilo é superlegível, você lê com prazer, sentindo tudo o que ele descreve”, avalia.
BELMIRA MAGALHÃES – Professora do curso de Letras da Ufal
Especialista em Graciliano Ramos, a professora Belmira Magalhães é mais uma pesquisadora egressa do curso de Letras da Ufal. Ela estuda formas narrativas na obra de Graciliano Ramos com enfoque na crítica literária. Atualmente, Belmira concentra suas pesquisas nos romances Vidas Secas, Angústia e São Bernardo. Em sua abordagem, ela destaca a denúncia de Graciliano sobre as relações de poder e o perfil de literato esboçado pelo escritor em seus relatórios. “A primeira coisa que gostaria de salientar refere-se à atualidade dos Relatórios de Graciliano Ramos, que tão bem refletem a relação entre as subjetividades dominantes e dominadas, e a necessidade dos donos do poder de criar indivíduos que se submetam sem contestação aos desmandos dos patrões e do poder público. Nos relatórios já está presente o grande literato, tanto do ponto de vista formal, com uma escrita sucinta, correta e objetiva, como do ponto de vista da realidade que se propõe discutir, sempre mostrando os horrores que são cometidos pelo poder.
MARCOS FALCHERO FALLEIROS – Professor de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Autor da dissertação de mestrado A Retórica do Seco – Graciliano Ramos (USP, 1989), Marcos Falchero Falleiros é especialista na obra do escritor. Em seu depoimento sobre os relatórios políticos do autor de São Bernardo, ele enviou o texto com o título Graciliano Ramos contra os Donos do Brasil. Nele, escreveu:
“Graciliano Ramos publicou dois relatórios anuais dando conta de pouco mais de dois anos de sua administração como prefeito de Palmeira dos Índios, em 1928 e 1929. Às vésperas da Revolução de 30, o deboche honesto de seu estilo dava eco bem mais verdadeiro aos ideais de justiça, ordem social e anticorrupção, que eram alardeados pelo que ele qualificou depois, com enjoo, de ‘demagogia tenentista’. Os relatórios, rompendo com toda a impostação da linguagem bacharelesca, tiveram tal sucesso que Marques Rebelo, em série de artigos publicados em 1953, na Gazeta de Alagoas, contava que quase teve que disputá-los a dentada, quando os encontrou no Rio, em folhetos com edição própria e capa cor de telha, sendo lidos sovinamente por Rômulo de Castro – secretário da editora de Augusto Schmidt e interlocutor das tratativas de
publicação de Caetés.
Fonte: A Gazeta